Madame SATÃ

05/11/2011 14:00

Texte de Mestre Nestor Capoeira

Version originale

 

Madame Satã (João Francisco dos Santos, 1900-1976) foi o mais famoso, longevo - malandros e

valentes geralmente morriam bem antes dos quarenta -, e maldito dos malandros cariocas.

Ele imperou na Lapa, especialmente entre 1920 e 1950. E, paradoxalmente, apesar de ter vivido

como pivete de rua e mais tarde como valente e leão-de-chácara, a partir de 1913, na Lapa (sede de

uma das mais famosas maltas e vizinha do bairro da Glória da famigerada Flor da Gente); apesar de

citar malandros e bandidos famosos em suas memórias, ditadas a Sylvan Paezzo ; apesar de ter feito um

longo depoimento ao jornal "O Pasquim" e de ter uma breve biografia editada nove anos após sua

morte, Satã nunca mencionou - uma só vez que fosse - as maltas que tinham sido extintas menos de

vinte anos antes dele cair nas ruas onde morava e dormia, pivete e ladrãozinho de pequenos furtos. Era

como se aquelas maltas nunca tivessem existido.

Ao ditar suas memórias, aos setenta anos de idade, Satã só menciona duas vezes a própria

capoeira: ao descrever sua estratégia de briga (muitos saltos e esquivas, a demolidora tapona de

esquerda "e, claro, a capoeira, que a gente aprendia na rua"); e quando um jovem malandro insiste em

aprender capoeira com ele, Satã dá-lhe uma banda e um tombo e o envia "para uns capoeiras no cais do

porto".

A Lapa boêmia começou a crescer por volta de 1910 e atingiu seu período de ouro mais ou

menos entre o final dos anos quarenta (1940)... Os bares: o Siri, o Café Colosso, o Capela, o Café

Bahia, o Imperial. Os cabarés: o Apolo, o Royal Pigalle, o Vienna Budapeste, o Novo México, o

Casanova, e o incrível Cu da Mãe. O Cassino High Life...

Parisienses, polacas e brasileiras. Leonor Cammarão, que morreu enquanto tomava um banho de

champanhe. Boneca, por quem mais de um homem se matou...

Mas outros lugares como o Mangue, a Saúde, a Praça Onze e o Cais do Porto também abrigaram

muitos malandros... Meia-Noite, Beto Batuqueiro, Edgar, Sete-Coroas, Miguelzinho e muitos outros...

A partir de 1937, a vida do malandro vai ficando mais difícil. O Estado Novo de Getúlio Vargas,

com sua ideologia de culto ao trabalho e à produção, inicia uma severa repressão aos "ociosos".

Meia-Noite morreu assassinado por um desafeto em 1938. Miguelzinho morreu aos dezoito anos

de morte natural. Joãozinho da Lapa foi assassinado por um companheiro de malandragem por volta

de 1939. Edgar morreu aos 26 anos de idade - só um sobrou para contar a história...

João Francisco dos Santos - o Madame Satã -, 1,75 m., 108 kg. sem uma grama de gordura, forte

e parrudo, cabelos negros longos e lisos, foi conhecido inicialmente como "Caranguejo da Praia das

Virtudes", onde nadava diariamente, e mais tarde como "Mulata do Balacochê", o primeiro artista

travesti do Brasil. Em 1928, aos 28 anos de idade, após ser pivete de rua e garçon, matou com um tiro

o vigilante noturno Alberto "28" que o provocara - "veado! -; dois anos e três meses no presídio da Ilha

Grande e, mais tarde, absolvido por legitima defesa.

Isto foi o começo de uma carreira dividia entre a vida noturna, a boemia da Lapa e o cárcere - em

especial a Ilha Grande -, onde passou mais de 27 anos. Em 1945, conta a lenda, Satã matou o sambista

Geraldo Pereira, o Geraldo das Mulheres, um valente com mais de 1,90m., com uma única tapona de

esquerda.

Nas palavras do próprio Madame Satã:

Fui me formando na malandragem. Malandro, naquele tempo, não queria dizer exatamente o que

quer dizer hoje. Malandro era quem acompanhava as serenatas e frequentava os botequins e cabarés e

não corria de briga mesmo quando era contra a polícia. E não entregava o outro. E respeitava o outro.

E cada um usava a sua navalha, cuja melhor era a sueca... Apelido de navalha era "pastorinha"... Mas

quando eu falo em respeito, não estou dizendo, amizade, que isso não existia. E o respeito vinha do

medo.

A malandragem foi surgindo nos morros e no centro durante a década de 1920... ao mesmo tempo

ia surgindo também a primeira geração de sambistas do morro, também malandros... durante a década

de 30, o malandro foi rei... nos anos 40, o malandro se disfarçou, num discreto e respeitável terno de

linho, imagem que permanece até hoje.

Semelhante às maltas - apesar de Satã jamais mencionar os Guaiamus ou os Nagoas -, cada

malandro tinha sua área de influência, locais onde eram os "protetores" - os atuais leões-de-chácara - de

estabelecimentos diversos. Satã cita Saturnino, da Praça Onze; Gavião Branco e Gavião Preto, da

Saúde; Henrique Fin-fin, da Praça Mauá; Brancura, que protegia os bares e casas de prostituição do

baixo meretrício; Índio da Carmange, que protegia vários bares; Tinguá; etc. Cita, com respeito,

Edgar; Sete Coroas e Meia Noite, pela valentia e maldade; e Camisa Preta, o "rei da malandragem".

Sete Coroas foi o mestre de Satã na fina arte da malandragem: o jogo, a navalha, o papo, a

rasteira, a valentia. Por volta de 1928 (aos 28 anos) ele já era um valente muito conhecido e respeitado

por seu murro de esquerda.

Madame Satã, símbolo de marginalidade, está à vontade no anos setenta (1970, com setenta anos

de idade mas inteiro). Satã usava cabelo pelos ombros quarenta anos antes dos hippies. E destruiu à

socos de canhota o esterótipo do homossexual frágil e delicado.

Por volta de 1971, Satã e o cartunista Jaguar comiam num bar da estação dos bondinhos que vão

para Santa Tereza, próximo à Lapa (centro do Rio). Dois guardas provocaram uma bichinha. Satã

perguntou aos guardas: "Porque vocês não vêm falar comigo?". Um dos guardas respondeu: "Que é

isso, vovô?", e deu um peteleco no chapéu de Satã. O "vovô" deu-lhe uma bofetada de esquerda no

ouvido que o jogou longe, esparramado no chão.

Curiosamente, Sinhozinho - mestre de capoeira carioca de 1930 a 1960 -, era instrutor da

"temida Polícia Especial", a mesma que seu contemporâneo, o "maldito" Madame Satã, enfrentou

várias vezes nas ruas da Lapa - brigas que viraram lenda. A Polícia Especial fazia ronda numa

"patrulhinha" com três policiais. Satã, mais de uma vez, enfrentou sozinho, "na mão", uma destas

equipes; várias vezes, reforços foram pedidos para derrubar o temível malandro.

Por outro lado, existe, assim como na capoeira, um "fio-terra invisível" que une a ética da

malandragem ao candomblé, à macumba, às práticas "espirituais" mais diversas. João Antonio, num de

seus contos, põe na boca de Laércio Arrudão - malandro-mor do Mangue (antiga área do baixo

meretrício) por volta de 1950/60 - as seguintes palavras:

Pousando as duas mãos nos meus ombros, falando baixo e sério um português bem clarinho,

Laércio começava a me escolar que quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o dinheiro interessa.

Só ele é positivo. O resto são frescuras do coração.

No entanto, seu pupilo - Paulinho Perna Torta -, anos depois, após atingir o auge do sucesso, é

atormentado por dúvidas e nos remete à capoeira de Salvador - "com um fio-terra ligado à religião" -,

que sobreviveu (a capoeira baiana) enquanto a pragmática capoeira carioca das maltas do século XIX

foi desbaratada pela polícia e seu nome (da capoeira carioca) apagado até mesmo da memória da

marginalidade, menos de três décadas após seu auge.

A encabulação (confidencia Paulinho Perna Torta) maior me nasce de umas coisas bestas, cuja

descoberta e matutação a ginga macumbeira de Zião da Gameleira começou a me despertar. Uma

virada do destino, na vida andeja deste aqui. Um absurdo que Zião, sem querer, acabasse me

levantando dúvidas bestas.

… que fiz trinta anos e pensei umas coisas de minha vida.

Os malandros que viveram nas primeiras décadas do século XX, e "protegeram" a Lapa, são um

estranho elo de ligação entre as maltas cariocas do século XIX - das quais eram os herdeiros - e as

academias de capoeira que irão começar a se alastrar no Rio:

- na década de 1930, com Sinhozinho (capoeira-luta sem berimbau ou ritual);

- na de 1950, com Artur Emídio (capoeira de Itabuna, similar à de Bimba, capoeira objetiva com

berimbau);

- e na década de 1960, com o jovem Grupo Senzala (fortemente influenciado pela capoeira

regional criada por mestre Bimba em Salvador, na década de 1930).

Apesar do obscurecimento dos atores e cenários da capoeiragem das maltas do século XIX,

houve uma herança que se transmitiu de maneira não-causal e não-linear. O saber da capoeiragem dos

1800s "enxameou" o universo do samba; da malandragem do início dos 1900s; e da capoeiragem

carioca das décadas de 1930, 50 e 60.